Das cavernas, marcas para a eternidade

Eu não tenho dúvida nenhuma de que a nossa presença no mundo
implicou indiscutivelmente a invenção do mundo
Paulo Freire
(Paulo Freire 1996)

Vídeo disponibilizado pelo autor Antônio Nóbrega por ocasião da divulgação de seu novo trabalho RIMA.
        COMEÇO DE TUDO
(Antonio Nobrega/ Rodrigo Bragança)
Mato é o cabelo da terra
flor é o sorriso do mato
pólen, a carta de amor
abelha, carteiro-jato
mel é o desejo do pólen
pétala, orgasmo do tato

Lua é o olho do céu
ralo é a boca do chão
gato, as pernas da noite
chuva é o confete do cão
poste é o abajur da rua
nuvem, prenhez do trovão

Concha é o ouvido do mar
brisa é Deus cochichando
onda, a mão do oceano
calor, meu pai abraçando
pegada, selo do pé
pedra é o tempo esperando

Som é o escuro do surdo
mão é a boca do mudo
música, a dança das notas
grave é a barriga do agudo
vida, o corpo em travessia
morte, o começo de tudo

        Ao sair da caverna, o humano primitivo se vê diante do desconhecido e do inesperado: um bisão. Amedrontado, retorna à caverna e desenha o bisão. Desenha também a si próprio, estampa suas próprias mãos nas paredes, e desenha a si enfrentando o bisão. Assim, através do desenho, ele se (re)conhece. Elabora seus medos e cria suas maneiras de transformar o mundo em que vive. A questão primordial dos humanos é, e sempre foi, driblar a morte, por isso, deixa marcas que deverão ultrapassar a sua própria vida. Tendo consciência da própria morte, o homem busca meios de alongar sua vida indefinidamente. “Morte é o começo de tudo”, canta Antônio Nóbrega. É a busca pelo infinito.

        Aí se origina toda a matemática que conhecemos hoje: no momento em que o humano, pela representação, busca compreender o seu tempo e espaço, e assim constrói o seu lugar como sujeito de si e do seu mundo. “A matemática como uma condição de estar no mundo”, disse Paulo Freire em tempos recentes (1997).

        A matemática surge indistinta da linguagem, da arte, indistinta da vida, é a expressão de homens e mulheres diante das suas demandas, dos seus conflitos, na busca da construção de sua identidade.

        Como expressão das coisas da vida, a matemática prossegue ao longo da história humana. A proximidade entre a representação e o problema vivido motiva uma forma procedimental, uma descrição de “como fazer”. Os desenhos nas paredes, ou seja, a matemática daqueles tempos, mostram os modos de caçar, de conviver, que eram a ciência daquele momento. Outras matemáticas surgiram em outros tempos a partir de outras demandas, sempre em resposta às necessidades imediatas da vida de então. O ser humano, fixado na terra pela agricultura que se iniciou por volta de 10.000 a.C (Mazoyer & Roudart, 2001), passou a sentir necessidade de trabalho em grupo, divisão da produção, trocas. Surgem feiras, vilas, primeiras cidades, em torno dos rios Tigre e Eufrates.
mulher pássaro

A Criação

Há muito tempo nada havia...

        Acompanhando esta outra maneira de estar no mundo seguem-se outras maneiras de expressar a própria existência. O comércio incipiente demanda registros das trocas, daí inventam-se os símbolos cunhados em placas de argila, a escrita cuneiforme dos Sumérios (3500 a.C). Estas placas sobreviveram à destruição da Suméria por guerras e chegaram aos babilônios (1830 a.C a 539 a.C), tornando acessível um conhecimento que possivelmente já havia alcançado o que hoje chamamos frações, álgebra, equações quadráticas e cúbicas e o que posteriormente recebeu o nome de “Teorema de Pitágoras”. Em tempos próximos, os Egípcios inventaram símbolos sagrados, seus hieróglifos, para escrever mensagens em templos e túmulos, novamente a matemática indistinta da arte e da vida, expressão de estar no mundo.

        Os povos Sumérios, e posteriormente, Egípcios e Babilônios (entre os séculos XVIII e VI a.C), se aprimoraram nas descrições de seus processos por causa das necessidades recorrentes de medir áreas. Bem mais tarde, por volta do ano 440 a.C, Heródoto, um grande estudioso do mundo e do modo de viver de povos anteriores ao seu tempo, teve a preocupação de registrar os costumes dos povos antigos na região em torno do Mar Mediterrâneo e norte da África. Com muita atenção no relato das coisas daquele tempo e local, as narrativas de Heródoto nos ajudam a perceber que a matemática acompanha o movimento da vida: as vilas, o comércio, contrabandos, prostitutas,..., foi ali que se desenvolveu o conhecimento que hoje chamamos "matemática". Heródoto trouxe a nós fragmentos de um viver que não mereceu espaços nos textos matemáticos. Os dejetos da cidade retibuiuram. Sem fazer distinção entre classes e saberes o lixão nos devolveu fragmentos de Euclides, assim como de Heródoto.

        Heródoto deixou claras as demandas decorrentes das variações climáticas e cheias dos rios em tempos que precederam seu nascimento. Mostrou, em seus relatos, que em terras entre-rios, nem o chão em que se pisa é consolidado:
Cena de caça em pinturas rupestres do Piauí.
Fonte: Tese de Doutorado de Sonia Maria Campelo Magalhães, "Arte rupestre do centro-norte do Piauí: indícios de narrativas icônicas", p. 262, disponível aqui
cena de caça em pintura rupestre
Este é o papiro 2099 de Oxirrinco contendo trechos das "Histórias", de Heródoto. Foi encontrado em lixão próximo à cidade do Cairo. Outras peças de grande valor arqueológico também foram recolhidas, como trechos do Novo Testamento e dos "Elementos" de Euclides, listas de compras a relatos de casos corriqueiros
Fonte da imagem: POxy: Oxyrhynchus Online
papiro de Heródoto
        "Disseram-me ainda os sacerdotes que Sesóstris [rei do Egito e da Etiópia] realizou a partilha das terras, concedendo a cada Egípcio uma porção igual, com a condição de lhe ser pago todos os anos certo tributo. Se o rio carregava alguma parte do lote de alguém, o prejudicado ia procurar o rei e expor-lhe o acontecido. O soberano enviava agrimensores ao local para determinar a redução sofrida pelo lote, passando o dono a pagar um tributo proporcional à posição restante. Eis, segundo me parece, a origem da geometria, que teria passado desse país para a Grécia. Quanto ao gnomo ou relógio solar e a divisão do dia em doze partes os Gregos devem-nos aos Babilônios." (Heródoto, Livro II, parágrafo CIX)

        Assumindo forma diversa a cada cheia, o terreno variante parece ter demandado muita matemática. Possivelmente daí desenvolveu-se a leitura dos astros para compreender os movimentos dos rios, o cálculo de áreas para refazer a divisão das terras e recalcular as tarifas em terras arrendadas ao povo pelo Faraó. Assim vemos que aqui, como nas cavernas, a iniciativa de resolução um problema faz surgir um estilo procedimental, enfatizando “como fazer”, geometria: como medir a terra. O historiador da matemática J. Ritter (1989) comparou um texto egípcio e outro babilônico, ambos dos entornos do terceiro milênio anterior à nossa era. Os dois textos endereçavam um mesmo problema, calcular a capacidade de armazenamento de um silo. Ritter percebeu o estilo procedimental que também observou nas produções matemáticas de outras localidades:

        A estrutura formal dos dois textos, egípcio e babilônico, oferece um certo número de características comuns, que também seriam encontradas nos textos matemáticos da China e do Irã. Caracteriza-se por uma apresentação retórica; no sentido de que os problemas se expressam em palavras (da linguagem cotidiana) e não em símbolos; numérica: dados e resultados são números concretos e não abstrações; algorítmica: com uma série específica de etapas de resolução e sem demonstrações gerais. (Ritter, 1989, p.44, tradução nossa, grifos do autor)

        Nessa apresentação retórica, numérica e algorítmica, Ritter, chama atenção para a inexistência do simbolismo matemático (equações, fórmulas) que caracterizam os escritos modernos, bem como a participação direta do autor (escriba) cuja “voz” aparece explicitamente na solução. O texto algorítmico era uma narrativa na segunda pessoa, que podia estar em tempo futuro ou no imperativo, como mostram os seguintes extratos de resolução do mesmo problema:

Exemplo para fazer um silo redondo de 9 (e de) 10.
Tu subtrairás 1/9 de 9: 1. Resta: 8. Multipliques 8 por 8 e virá 64. Tu multiplicarás 64 por 10; virá 640. Adiciones sua metade; virá 960, sua quantidade em khar.
Tu tomarás 1120 de 960: 48. O montante em 100 quádruplos heqat; trigo: 48 heqat.
Forma do seu procedimento:
1 8 1 64 1/10 96
2 16 \ 10 640 \ 1/20 48
4 32
\ 8 64 \ 1/2 320
Total: 960

foto do artigo de ritter
Os dois algoritmos, lado a lado, escritos em francês, como aparecem no artigo (Ritter, 1989, p.43).
"O procedimento para um "tronco". 5, um cúbito, era o seu diâmetro. Em medida de grão quanto ele vale? No seu proceder, coloque a profundidade, tanto quanto o diâmetro. Convertida a 5, a 1 resulta. Triplique 5, o diâmetro, à 15 resulta. 15 é a circunferência do "tronco". Faça o quadrado de 15, à 3 5 resulta. Multiplique 3 45 por 5, o igigubbum do círculo, "à 18 45, como a superfície" resulta. Multiplique 18 45 por 6, (o igigubbum) da medida do grão; à 1 52 30 resulta. O "tronco" contém 1 panum, 5 sutum, 2 1/2 qum de um grão,
"Eis o procedimento."

        O autor mostrou que o estudo comparativo das apresentações matemáticas da antiguidade nos mostra desenvolvimentos diferentes entre si, completamente inseridos nas condições locais de vida em sociedade e cultura. Isto faz cair por terra a ideia de que haveria uma “natureza” própria, interna, autônoma, que caracterizaria “a matemática” e nos leva a compreender que “matemática se escreve no plural”, como defende o autor. Além disso, também desconstrói o pré-conceito de que a ciência evolui linear e cumulativamente, ao mostrar que os movimentos fundadores da ciência não se assemelham ao que ela é agora. (Ritter, 1989, p.60)

Referências

FREIRE, P. Entrevista a Ubiratan D'Ambrosio e Maria do Carmo Mendonça em 1996. Disponível aqui.
HERÓDOTO (484 A.C. - 425 A.C.), Histórias (Livros 1 a 9) Broca, J. B. (trad.), eBooks Brasil, 2006. Disponível aqui.
MAGALHÃES, Sônia Maria Campelo, Arte rupestre do centro-norte do Piauí: indícios de narrativas icônicas. Tese de Doutrado. Programa de Pós-Graduação em História, UFF, 2006. Disponível aqui.
MAZOYER, M.; ROUDART, L. História das agriculturas do mundo: do neolítico à crise contemporânea. Lisboa: Instituto Piaget, 2001.
RITTER, J. Chacun sa vérité: les mathématiques en Egypte et en Mésopotamie. In: Éléments d’histoire des sciences. Org. Serres, M., 1989.

Programa de Pós-Graduação em
História das Ciências e das Técnicas e Epistemologia
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