Vídeo disponibilizado pelo autor Antônio Nóbrega por ocasião da divulgação de seu novo
trabalho RIMA.
        COMEÇO DE TUDO
(Antonio Nobrega/ Rodrigo Bragança)
Mato é o cabelo da terra
flor é o sorriso do mato
pólen, a carta de amor
abelha, carteiro-jato
mel é o desejo do pólen
pétala, orgasmo do tato
Lua é o olho do céu
ralo é a boca do chão
gato, as pernas da noite
chuva é o confete do cão
poste é o abajur da rua
nuvem, prenhez do trovão
Concha é o ouvido do mar
brisa é Deus cochichando
onda, a mão do oceano
calor, meu pai abraçando
pegada, selo do pé
pedra é o tempo esperando
Som é o escuro do surdo
mão é a boca do mudo
música, a dança das notas
grave é a barriga do agudo
vida, o corpo em travessia
morte, o começo de tudo
        Ao sair da caverna, o humano primitivo se vê diante do desconhecido e do inesperado: um bisão.
Amedrontado, retorna à caverna e desenha o bisão. Desenha também a si próprio, estampa suas próprias mãos nas paredes,
e desenha a si enfrentando o bisão. Assim, através do desenho, ele se (re)conhece. Elabora seus medos e cria suas maneiras
de transformar o mundo em que vive. A questão primordial dos humanos é, e sempre foi, driblar a morte, por isso,
deixa marcas que deverão ultrapassar a sua própria vida. Tendo consciência
da própria morte, o homem busca meios de alongar sua vida indefinidamente. “Morte é o começo de tudo”, canta Antônio Nóbrega.
É a busca pelo infinito.
        Aí se origina toda a matemática que conhecemos hoje: no momento em que o humano,
pela representação, busca compreender o seu tempo e espaço, e assim constrói o seu lugar como sujeito de si e
do seu mundo. “A matemática como uma condição de estar no mundo”, disse Paulo Freire em tempos recentes
(1997).
        A matemática surge indistinta da linguagem, da arte, indistinta da vida, é a expressão de homens e
mulheres diante das suas demandas, dos seus conflitos, na busca da construção de sua identidade.
        Como expressão das coisas da vida, a matemática prossegue ao longo da história humana.
A proximidade entre a representação e o problema vivido motiva uma forma procedimental, uma descrição de “como fazer”.
Os desenhos nas paredes, ou seja, a matemática daqueles tempos, mostram os modos de caçar, de conviver, que eram a ciência
daquele momento.
Outras matemáticas surgiram em outros tempos a partir de outras demandas, sempre em resposta
às necessidades imediatas da vida de então. O ser humano, fixado na terra pela agricultura que se iniciou por volta de
10.000 a.C (Mazoyer & Roudart, 2001), passou a
sentir necessidade de trabalho em grupo, divisão da produção, trocas. Surgem feiras, vilas, primeiras cidades, em torno
dos rios Tigre e Eufrates.
A Criação
Há muito tempo nada havia...
        Acompanhando esta outra maneira de estar no mundo seguem-se outras maneiras de expressar a
própria existência. O comércio incipiente demanda registros das trocas, daí inventam-se os símbolos cunhados em placas
de argila, a escrita cuneiforme dos Sumérios (3500 a.C). Estas placas sobreviveram à destruição da Suméria por guerras e
chegaram aos babilônios (1830 a.C a 539 a.C), tornando acessível um conhecimento que possivelmente já havia alcançado o
que hoje chamamos frações, álgebra, equações quadráticas e cúbicas e o que posteriormente recebeu o nome de
“Teorema de Pitágoras”. Em tempos próximos, os Egípcios inventaram símbolos sagrados, seus hieróglifos, para escrever
mensagens em templos e túmulos, novamente a matemática indistinta da arte e da vida, expressão de estar no mundo.
        Os povos Sumérios, e posteriormente, Egípcios e Babilônios (entre os séculos XVIII e VI a.C),
se aprimoraram nas descrições de seus processos por causa das necessidades recorrentes de medir áreas.
Bem mais tarde, por volta do ano 440 a.C, Heródoto, um grande estudioso do mundo e do modo de viver de povos anteriores ao
seu tempo, teve a preocupação de registrar os costumes dos povos antigos na região em torno do Mar Mediterrâneo e norte da
África. Com muita atenção no relato das coisas daquele tempo e local, as narrativas de Heródoto nos ajudam
a perceber que a matemática acompanha o movimento da vida: as vilas, o comércio, contrabandos,
prostitutas,..., foi ali que se desenvolveu o conhecimento que hoje chamamos "matemática". Heródoto trouxe a nós fragmentos
de um viver que não mereceu espaços nos textos matemáticos. Os dejetos da cidade retibuiuram. Sem fazer distinção entre classes e
saberes o lixão nos devolveu fragmentos de Euclides, assim como de Heródoto.
        Heródoto deixou claras as demandas decorrentes das variações climáticas e
cheias dos rios em tempos que precederam seu nascimento. Mostrou, em seus relatos, que em terras entre-rios, nem o chão em que
se pisa é consolidado:
Cena de caça em pinturas rupestres do Piauí.
Fonte: Tese de Doutorado de Sonia Maria Campelo Magalhães,
"Arte rupestre do centro-norte do Piauí: indícios de narrativas icônicas", p. 262, disponível
aqui
Este é o papiro 2099 de Oxirrinco contendo trechos das "Histórias", de Heródoto. Foi encontrado em
lixão próximo à cidade do Cairo.
Outras peças de grande valor arqueológico também foram recolhidas, como trechos do Novo Testamento e dos "Elementos" de Euclides, listas de compras a relatos de casos corriqueiros
Fonte da imagem:
POxy: Oxyrhynchus Online
        "Disseram-me ainda os sacerdotes que Sesóstris [rei do Egito e da Etiópia]
realizou a partilha das terras, concedendo a cada Egípcio uma porção igual, com a condição de lhe ser pago
todos os anos certo tributo. Se o rio carregava alguma parte do lote de alguém, o prejudicado ia procurar o
rei e expor-lhe o acontecido. O soberano enviava agrimensores ao local para determinar a redução sofrida
pelo lote, passando o dono a pagar um tributo proporcional à posição restante. Eis, segundo me parece, a
origem da geometria, que teria passado desse país para a Grécia. Quanto ao gnomo ou relógio solar e a divisão
do dia em doze partes os Gregos devem-nos aos Babilônios." (Heródoto, Livro II, parágrafo CIX)
        Assumindo forma diversa a cada cheia, o terreno variante parece ter demandado muita matemática.
Possivelmente daí desenvolveu-se a leitura dos astros para compreender os movimentos dos rios, o cálculo de áreas para
refazer a divisão das terras e recalcular as tarifas em terras arrendadas ao povo pelo Faraó. Assim vemos que aqui, como
nas cavernas, a iniciativa de resolução um problema faz surgir um estilo procedimental, enfatizando “como fazer”, geometria:
como medir a terra. O historiador da matemática J. Ritter
(1989) comparou um texto egípcio e outro babilônico, ambos dos entornos do terceiro milênio anterior à nossa era.
Os dois textos endereçavam
um mesmo problema, calcular a capacidade de armazenamento de um silo. Ritter percebeu o estilo procedimental que também
observou nas produções matemáticas de outras localidades:
        A estrutura formal dos dois textos, egípcio e babilônico, oferece um certo número de características
comuns, que também seriam encontradas nos textos matemáticos da China e do Irã. Caracteriza-se por uma apresentação retórica;
no sentido de que os problemas se expressam em palavras (da linguagem cotidiana) e não em símbolos; numérica: dados e
resultados são números concretos e não abstrações; algorítmica: com uma série específica de etapas de resolução e sem
demonstrações gerais. (Ritter, 1989, p.44, tradução nossa, grifos do autor)
        Nessa apresentação retórica, numérica e algorítmica, Ritter, chama atenção para a
inexistência do simbolismo matemático (equações, fórmulas) que caracterizam os escritos modernos, bem como a participação direta
do autor (escriba) cuja “voz” aparece explicitamente na solução. O texto algorítmico era uma narrativa na segunda pessoa, que
podia estar em tempo futuro ou no imperativo, como mostram os seguintes extratos de resolução do mesmo problema:
Exemplo para fazer um silo redondo de 9 (e de) 10.
Tu subtrairás 1/9 de 9: 1. Resta: 8. Multipliques 8 por 8 e virá 64. Tu multiplicarás 64 por 10; virá 640.
Adiciones sua metade; virá 960, sua quantidade em khar.
Tu tomarás 1120 de 960: 48. O montante em 100 quádruplos heqat; trigo: 48 heqat.
Forma do seu procedimento:
1
8
1
64
1/10
96
2
16
\ 10
640
\ 1/20
48
4
32
\ 8
64
\ 1/2
320
Total:
960
Os dois algoritmos, lado a lado, escritos em francês, como aparecem no artigo
(Ritter, 1989, p.43).
"O procedimento para um "tronco". 5, um cúbito, era o seu diâmetro. Em medida de grão quanto ele vale? No seu proceder,
coloque a profundidade, tanto quanto o diâmetro. Convertida a 5, a 1 resulta. Triplique 5, o diâmetro, à 15 resulta.
15 é a circunferência do "tronco". Faça o quadrado de 15, à 3 5 resulta. Multiplique 3 45 por 5, o igigubbum do círculo,
"à 18 45, como a superfície" resulta. Multiplique 18 45 por 6, (o igigubbum) da medida do grão; à 1 52 30 resulta. O
"tronco" contém 1 panum, 5 sutum, 2 1/2 qum de um grão,
"Eis o procedimento."
        O autor mostrou que o estudo comparativo das apresentações matemáticas da antiguidade nos mostra desenvolvimentos
diferentes entre si, completamente inseridos nas condições locais de vida em sociedade e cultura. Isto faz cair por terra
a ideia de que haveria uma “natureza” própria, interna, autônoma, que caracterizaria “a matemática” e nos leva a compreender
que “matemática se escreve no plural”, como defende o autor. Além disso, também desconstrói o pré-conceito de que a ciência evolui linear e
cumulativamente, ao mostrar que os movimentos fundadores da ciência não se assemelham ao que ela é agora.
(Ritter, 1989, p.60)
Referências
FREIRE, P. Entrevista a Ubiratan D'Ambrosio e Maria do Carmo Mendonça em 1996.
Disponível aqui.
HERÓDOTO (484 A.C. - 425 A.C.), Histórias (Livros 1 a 9) Broca, J. B. (trad.), eBooks Brasil, 2006.
Disponível aqui.
MAGALHÃES, Sônia Maria Campelo, Arte rupestre do centro-norte do Piauí: indícios de narrativas icônicas. Tese de Doutrado. Programa de Pós-Graduação em História, UFF, 2006.
Disponível aqui.
MAZOYER, M.; ROUDART, L. História das agriculturas do mundo: do neolítico à crise contemporânea. Lisboa: Instituto Piaget, 2001.
RITTER, J. Chacun sa vérité: les mathématiques en Egypte et en Mésopotamie. In: Éléments d’histoire des sciences. Org. Serres, M., 1989.